Esse aqui é outro disco dos primeiros que comprei em CD, se bem me lembro, lá nos idos de 1995 (o disco é de 1994), quando então praticamente metade do disco já era tocada direto nas rádios da cidade (e de todo país).
Amolação, Jackie Tequila, Esmola, A Cerca, É Proibido Fumar, Pacato Cidadão, Te ver... todas tocaram absurdamente nas rádios, nas festas, nos bares, nas boates, e o Skank estourou no Brasil.
O nome do disco, "Calango" faz referência a um tipo de desafio de cancioneiros caipiras sobre um mesmo tema, como acontece em "A cerca", como se fosse um mote das músicas dos violeiros.
O disco, que vendeu mais de um milhão de cópias e que tem o Lelo na capa (que tem o jeitão de fantasia de carnaval mesmo - em comemoração, inclusive, pelo título no futebol em 1994) é, ao mesmo tempo que um marco na história do próprio Skank, porque definitivamente projetou o grupo no cenário nacional (porque vendeu mais de 4 vezes o que o primeiro disco) é também, singular na própria história musical do Skank, porque apesar do primeiro disco possuir algumas músicas que têm a batida bem dancehall jamaicano (característica marcante no Calango), que algumas vezes lembra Jimmy Cliff e até o UB40, parece que foi completamente esquecida no "Samba Poconé" já dois anos depois. E nunca mais. Há inclusive quem radicalizou a dizer que foi o único disco bom do Skank, o que é, na minha opinião, um grande exagero.
Não que o Skank não tenha refeito as suas próprias concepções e tendências musicais - que continuam, diga-se de passagem, ótimas nas letras de Samuel e do sempre presente Chico Amaral - mas de fato nada foi feito que se pareça com as batidas envolventes do Calango. Muito metal, batidas de reggae, ska, sintetizadores, programação eletrônica misturados com uma guitarra de levada caracteristicamente brasileira.
Nas letras, o disco todo é recheado de muito bom humor, misturando situações amorosas com momentos vexatórios (transformados em versos humorísticos), como em "Amolação":
Deus lá de cima sabe muito bem
Qual a minha sina: o que que me convém
Bicho do mato ela veio comigo
Teve ninho, carinho, broa, abrigo
Labutei na roça, labutei no milharal
Labutei passando bem
Labutei passando mei mal
Bruma no cerebro dela de repente
Brus tão brusca, brus bruscamente
Ou principalmente em "A cerca":
Tu cerca a terra, tu cerca até o mundo
Então cerca tua filha, toda noite aqui no fundo
Pois te conto um segredo
Cê não conta pra ninguém
Andam vendo tua mulher
Com o dono do armazém
Maledicência, eu já tó acostumado
Até dizem que o senhor é incapacitado
Eu tomo chuva, tomo ar puro de manhã
Minha saúde é de ferro, pergunte pra sua irmã!
Mas vai também (e o tema é sempre muito bem trabalhado pelo grupo em todos os discos) falar de amor, quando Samuel pede: "me dá um beijo, porque o beijo é uma reza pro marujo que se preza..." ou então quando diz que "te ver e não te querer é como esperar o prato e não salivar; Sentir apertar o sapato e não descalçar; É ver alguém feliz de fato sem alguém pra amar; É como procurar no mato estrela do mar..."
Também vai o grupo no social, ainda que de forma bem humorada, falar da tragi-comédia da miséria brasileira em "Pacato Cidadão", "Estivador" e "Esmola", onde se ouve que
"Eu tô cansado, meu bom, de dar esmola
Essa quota miserável da avareza
Se o pais não for pra cada um
Pode estar certo
Não vai ser nenhum"
e diz até que é necessário:
"Abolir a escravidão do caboclo brasileiro
Numa mão educação, na outra dinheiro." (Pacato Cidadão)
Personagens também são marcantes na discografia do grupo. Nesse disco, tem o misterioso "Sam" e, pricipalmente (a música mais executada do álbum) "Jackie Tequila", uma menina muito louca que vai no Funk, vai no Baião, vai no Reggae e que enlouquece o contador da estória, que resume a vida de Jackie numa estrofe que é cantada por todo mundo, nas rodas de violão e nos shows do skank, onde quer que ele toque, em duas notinhas, num reggae muito legal:
"Jackie foi nascer numa cabana em Noa Noa
Sol do Taiti na pele, nowboah
Seu pai cruzou o mar, duas filhas na canoa
Côco pra beber e leite de leoa
Jackie é uma menina tão bonita que enjoa
Enjôo de vertigem, viagem de avião
Hálito de virgem, dois olhos de amêndoa
Vaca, cadela, macaca e gazela
Linda toda, toda linda ela
Toda beleza se reconhece nela
Jackie Tequila, coca-cola e água
Égua, língua, mingua minha mágoa."
Comprei o disco, como falei, lá em 1995, mas perdi nas minhas idas e vindas pra João Pessoa, comprei outro dia, lá nas Americanas, novamente, bem baratinho. É disco que pode ser tocado a qualquer hora, em qualquer lugar, porque empolga seja lá quem estiver ouvido. E de lambuja, ainda traz o Rei, na voz do Samuel, fazendo certa apologia, em "É proibido fumar", música que inclusive entrou para um projeto de Frejat para canções de Roberto interpretadas por outros artistas.
Esse é o calango. Brasileiro como o bicho e como a cultura do país. Um disco singular que mistura tendências jamaicanas que se encaixaram com o jeitão brasileiro de fazer música desse grupo mineiro que acertou em cheio na escolha do repertório e de como executá-lo com perfeição, agregando os valores da música brasileira a elementos eletrônicos e que resultou num dos melhores discos brasileiros da Música Popular que conheço.