Este é um álbum de um artista que é simplesmente um virtuose, que no sentido de Aurélio Buarque de Holanda quer dizer malabarista, dominando em alta dificuldade as possibilidades infinitas de um violão e dos ritmos.
Já conhecia de muito o artista, sempre tocado na radiola lá em casa, quando eu ainda era bem pequeno. O Bêbado e o equilibrista na voz de Elis é canção marcante para minha infância. Compôs com Vinícius de Moraes, mas seu maior parceiro musical é Aldir Blanc, com quem compôs mais de 100 músicas.
Há quem diga (e isso não é muito incomum) que a técnica de João Bosco é tão impressionante que chega a ser exagerado, tamanha a habilidade que tem com o violão, fazendo o ouvinte pensar que sempre há um outro violão (ou talvez até dois) acompanhando-o.
O disco em questão é de 1992, mas somente comecei a ouvi-lo quando estava na faculdade, por causa de um colega de sala (e depois de República) chamado Breno. Ele (e depois pude ver o quanto os amigos músicos dele de São Luis adoravam - e tocavam - João Bosco) tinha um CD dessa gravação na qual o que impressiona é a crueza musical do disco: É só voz e violão.
De fato, por mais que os Acústicos, sobretudo a partir da década de 90 pugnavam pela limpeza de som, uso dos instrumentos "desplugados", não me lembro de um outro disco feito unicamente pela voz do intérprete e sua viola.
Sempre que escuto (e escuto sempre) o disco me sobressalta a impressão de suas grandes características (do disco e certamente do compositor): do ponto de vista das letras, um sincretismo religioso desse mineiro que une os búzios, o xangô e Jesus para descrever relações amorosas, de desejos humanos, peripécias de marginaizinhos do morro em busca da vida do crime ou as desgraças mundanas na luta eterna entre bem e mal, amor e ódio (ou saudade) e assim por diante.
A segunda impressão é a capacidade absurda do ritmista, que acompanha as batidas do violão com onomatopéias que só ele mesmo é capaz de fazer, além das pancadas cheias de suingue que executa no próprio violão. Age como se fosse um batuqueiro de escola de samba acompanhando a harmonia de sua voz e do pinho.
A última impressão é que não acho muito fácil de se achar tamanha capacidade de um compositor como acontece nas letras desse disco.
Algumas são de uma inteligência tão simples que chega a parecer brincadeira, como em Tiro de Misericórdia:
"Nas escadas da Penha
Penou no cotoco de vela
Velou a doideira da chama
Chamou o seu anjo-de-guarda
Guardou o remorso num canto
Cantou a mentira da nega
Negou o ciúme que mata
Matou o amigo de ala.
Tá lá"
e depois ele diz:
"Tá lá o amigo de ala
O amigo de ala
Matou o ciúme que mata
Negou a mentira da nêga
Cantou o remorso num canto
Guardou o seu anjo-de-guarda
Chamou a doideira da chama
Velou no cotoco da vela
Penou nas Escadas da Penha"
E nas outras - e aí o disco parece dividido entre a beleza das letras de amor absoluto e essa ligação de raízes quilombolas que permeia não só esse mas vários outros discos do cantor e compositor - é uma Odisséia de puro êxtase. Papel Machê, Jade, Memória da Pele e Corsário estão, para mim, entre as músicas mais belas da Música Brasileira. Por todas, Memória da Pele, adicionando também o link para o youtube - não é do disco, mas é uma execução parecida:
"Eu já esqueci você
Tento crer
Nesses lábios que meus lábios sugam de prazer
Sugo sempre
Busco sempre
A sonhar em vão
Cor vermelha carne da sua boca, coração
Eu já esqueci você, tento crer
Seu nome, sua cara, seu jeito, seu odor
Sua casa, sua cama
Sua carne, seu suor
Eu pertenço a raça da pedra dura
Quando enfim juro que esqueci
Quem se lembra de você em mim
Em mim
Não sou eu sofro e sei
Não sou eu finjo que não sei, não sou eu
Sonho bocas que murmuram
Tranço em pernas que procuram enfim
Não sou eu sofro e sei
Quem se lembra de você em mim
Eu sei, eu sei
Bate é na memória da minha pele
Bate é no sangue que bombeia
Na minha veia
Bate é no champanhe que borbulhava
Na sua taça e que borbulha agora na taça da minha cabeça
Eu já esqueci você, tento crer
Nesses lábios que meus lábios sugam de prazer
Sugo sempre
Busco sempre a sonhar em vão
Cor vermelha, carne da sua boca, coração"